quarta-feira, 17 de julho de 2013

A torcida que levanta, derruba - Allan da Rosa





O Cantagalo era um timaço. Fineza e pulmão no meio campo. Mulecage sem piedade na frente. A gana e o porrete na zaga. Marquito uma muralha no gol. O esquadrão não tinha nem reservas pra trocar de fardamento na beira dos campos sem vestiário. Desfalcado por contusão ou expulsão, ganhou com 9 jogadores mais de uma vez – negava aos reis o vexame de vestir a camisa encharcada de suor, de chuva ou de barro naquele tempo dos uniformes de pano. Cantagalo… vivão na memória dos boleiros. Anos sem perder e não era caso de tiro na bola, que naquela época ter uma redonda era luxo e se preservava. Quem adquiria uma nova de capotão recebia até visita durante a semana pra conferir a danada que ia rolar no domingo.

No Cantagalo, Riva imperou com a 10 por várias primaveras. Foi da meninada que saía na mão pra carregar as chuteiras dos bambas, pra levar a Olé, a Drible, a Viola, … mas logo com 14 anos estreou contra os cavalão e já voltava pra casa com seus calombo na perna e os golaço na memória. As fintas pro falatório da semana na padoca. Até que numa tarde resolveu se despedir. Não explicou o porque e nem frequentou mais o carteado da sedinha.

Mas a saudade da várzea abocanhava. Riva intimado por dentro. Morando na baixa do Jardim Maxixe e não mais lá no Morro do Carquejo onde mandava o Cantagalo, Riva voltou pelo Chaparral, o rival mais chulé, que sempre foi de ganhar uma, empatar duas e perder três.

Chegou e trouxe a magia no desenho do ataque, a sofisticação nos voleios, a calma nos arremates. E o Chaparral completou dez jogos sem derrota. No mesmo verão que o Cantagalo, convidado de honra nos festivais da cidade, empacava uma série de sete empates seguidos. Foi nessa mão que aconteceu o clássico anual da vila, lá no campão da Avenida Cuscuzeiro.

O Chaparral levou oitenta na torcida, batucando e soltando rojão, chegados a pé, de rolimã, de buzú ou espremidos na caminhonete que Tio Lói, dono do time, bancou pros jogadores. Nesse ano a justiça dos humildes ia prevalecer. Já o Cantagalo encheu quinze kombis e chegou soltando chuva de papel, levando sua seleção pra frente. Cada torcida atrás de uma trave.

Riva pisou a cancha barreada. Estranho aquele travo no peito, jogar contra seu Cantagalo… Do lado de lá o Marola, o Febem, o Tatu, o seu irmão Nivaldo. E um ou outro dos ex-parceiros veio lhe estender a mão.

A peleja começou e Riva bambeou. A torcida que levanta, derruba. O rancor cantava seus hinos. Antes de qualquer passe chegar pra ele, a torcida do Cantagalo trovejava suas vaias. Entre uma botinada que recebia do seu mano Nivaldo e uma pisada catimbeira no calcanhar, Riva mal pegava na bola. As vaias rasgavam o ar, arrastavam as nuvens. Assim o Cantagalo fez dois gols, do menino que substituía Riva e que queria comemorar com o seu mestre, com quem aprendeu os macetes de entortar zagueiro, de matar garboso no peito, chapelar, meter certeiro no cantinho, cadenciar o jogo. Mas não era dia… Riva era a pereba da vez.

A torcida do Cantagalo azucrinava gostoso o seu ídolo de outrora e Riva purgava ali as mancadas do mundo. A galera do Chaparral muchou, amuadinha mastigava a humilhação, até acender quando cismou que ali tinha medo ou trairagem. Sentiu cheiro de covardia: o Riva esfarelava é porque era contra seu time do peito e ele não queria proceder. Então, que harmonia!, afinadinhas as torcidas assoviavam e puteavam a cada frouxura do Riva. O campão vestia a manta de vaia a cada lance do camisa 10.

Bola é assim: se marca 3 gols és rei, se fica três jogos sem marcar, és vacilão, safado. Forca pra tu.

Intervalo. Sem nenhuma sílaba, o Tio Lói só na olhada pediu a camisa pro Riva. Havia uma molecada doida pra jogar há semanas, a mesma que agora rezava pra não morder aquela fogueira e que se escondia do técnico. Mas o Riva cresceu. Era vexame demais prum boleiro do seu naipe. Tira eu, não, Tio Lói! E quem é do lelê sabe o tamanho da brecha, o fura-zóio com os reservas se um titular desconsidera assim. Na farseta, os menino amuntuô e tumultuô. Forjaram uma rixa, insinuaram levante. Dariam o sangue pelo Chaparral … Riva manteve a pedida.

E o 10 voltou. Com ele a fuleiragem das torcidas, uma num coro gozando o despeito, a pirraça metralhando no grito o seu antigo cracaço, a outra na vergonha raivosa de quem pressente uma goleada e elege o vendido da ocasião. Era a bola chegar no raio do Riva que já se avacalhavam as blasfêmias.

Não durou o cacarejo. Nem a do Cantagalo pôde seguir na chacota, nem a do Chaparral teve a cara de pau de aplaudir seu craque no fim. Mal comemorou os gols… e foi 3 a 2 o resultado. Deu Chaparral de virada. Dois do Riva, um de cobertura e outro dibrando até o juiz e a trave. No ultimo minuto, mesmo descido no pontapé pelo Nivaldo, deitado na lameira ele lançou pra seu centroavante marcar num cabeceio de peixinho.

Depois de tirar os toletes da chuteira, subir na caçamba de novo, voltar pro barraco e abrir suas gaiolas, soltando curiós e coleirinhas, Riva antes de fechar a tramela do portão ainda disse pra Tio Lói, a quem deu as prisões cheias de alpiste com os poleiros vazios: “Sabe, prum homem de caráter a vaia é o maior incentivo”.


Allan da Rosa é escritor e poeta. Autor de ‘Da Cabula’, ‘Zagaia’ e ‘Morada’ entre outros.Apresenta o programa “À Beira da Palavra’, na Rádio Usp FM aos sábados, às 14h. É angoleiro, historiador e pedagogo. Integra o movimento de literatura periférica paulistana. É fundador da “Edições Toró”.



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