domingo, 17 de março de 2013

Ciganos Calon na Paraíba, Brasil (1993)





Núcleo de Estudos Ciganos
E-Texto no. 4
Recife, 2000


Apresentação.

Em 1992 aceitamos o convite do Procurador da República na Paraíba, Luciano Mariz Maia, de realizar uma pesquisa sobre os ciganos calon sedentarizados na cidade de Sousa, visando a obtenção de dados para o Inquérito Civil instaurado, a pedido dos próprios ciganos, para apurar violações aos seus direitos e interesses.

O ensaio a seguir é uma reprodução parcial do relatório preliminar apresentado em junho de 1993.[1] Os dados se baseiam em pesquisa realizada nos dias 15 a 28 de janeiro, 24 a 26 de março e 14 a 18 de abril de 1993. Por falta absoluta de apoio financeiro e devido à impossibilidade de sermos liberados em tempo integral das atividades docentes na Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, não foi possível realizar uma tradicional pesquisa antropológica, com uma permanência mais prolongada no campo.

Estamos, portanto, conscientes das inúmeras falhas deste relatório, mas esperamos que sirva pelo menos para estimular outros cientistas sociais brasileiros - que hoje já podem dispor de toda a bibliografia ciganológica nacional e mais uma ampla bibliografia ciganológica internacional - e talvez até alguns cientistas sociais estrangeiros, a retomar a pesquisa, completar os dados que faltam e corrigir os nossos erros. O Brasil é um verdadeiro campo ainda inexplorado para “ciganólogos” nacionais ou estrangeiros.

Aos ciganos de Sousa, nossos sinceros agradecimentos pela excelente acolhida que nos deram em 1993.


População.

Na Paraíba, Nordeste do Brasil, uma grande concentração de ciganos é encontrada na cidade de Sousa, no interior do Estado, a 420 km da capital João Pes­soa. Na periferia da cidade, em 1991 com uma população de quase 45.000 habitantes, habitavam em 1993 cerca de 450 ciganos, espalhados sobre três "ranchos", a 3 km do centro. Os ranchos A e B eram vizinhos e o rancho C ficava a cerca de ùm qui­lômetro de dis­tância; no meio existiam al­gumas casas iso­ladas habitadas por ciga­nos e vári­as ca­sas de não-ciganos pobres. O número total de habi­tações ciganas era em torno de 70, na maioria mo­destas casas de taipa, umas oito casas de alvenaria (algumas ainda em construção) e um número igual de "latadas" (abrigos simples, feitos com algumas estacas de madeira e teto e pa­redes de palha de co­queiro). Ao lado de várias ca­sas existiam ainda "latadas" apenas com um teto de palha e sem pare­des, que não eram usadas para morar, mas apenas para co­zinhar ou exercer atividades diversas.

Os ciganos de Sousa pertencem ao grupo Calon, ou seja, são des­cen­den­tes de ciganos portugueses que, em séculos passados, mi­graram volunta­ria ou com­pulsoria­mente para o Brasil. Os sobreno­mes mais comuns são Pereira, Fe­reira, Lopes, Costa, Carva­lho, Torqua­to, Figueiredo e Al­ves, uma prova adicional de sua ori­gem portu­guesa. Uma origem que, por sinal, eles pró­prios des­co­nhe­cem.

Afirmam que existem outros ci­ganos espalha­dos por todo o interior da Paraíba, mas sempre se trata de grupos menores. A se­gunda maior concentração parece ser em Patos onde vivem cerca de cem ci­ganos, se­gundo informação do chefe destes ciga­nos, quando em visita aos familiares de Sousa.

Antes de iniciarmos a pesquisa de campo, dois chefes ciga­nos calcu­la­ram a popu­lação cigana da cidade de Sousa em cerca de 800 pes­soas. Na reali­dade, em janeiro de 1993 o nú­me­ro de ci­ganos era de 445 pessoas, sendo 224 homens e 221 mulheres.

O resultado do nosso recenseamento, que acusou a presen­ça de apenas 445 ciganos, visivelmente não agradou a um dos chefes que in­sistia que eram 800, porque muitos estari­am via­jando, estariam fora, para ganhar algum di­nhei­ro e que dentro de algumas semanas ou talvez meses voltariam para Sousa. No en­tanto, até meados de abril, não nos foi possi­vel presen­ciar a volta de famíli­as ci­ga­nas de suas viagens. A irritação deste chefe cigano tem sua ra­zão de ser porque quanto mais ciganos, mais eleitores, mais votos e, se­gundo acre­ditam errôneamente, mais apoio dos po­líti­cos locais. Não fal­tou quem con­fun­disse o nosso censo com uma pesquisa sobre o número de eleito­res: "Doutor, pode es­crever que na minha casa tem oito eleitores".


              POPULAÇÃO CIGANA DE SOUSA – 1993

Idade
Homens
Mulheres
Total
75 - ++
  3
  4
  7
70 – 74
  6
  4
 10
65 – 69
  5
  4
  9
60 – 64
  6
  6
 12
55 – 59
  5
  4
  9
50 – 54
  5
  6
 11
45 – 49
 10
  4
 14
40 – 44
  7
 13
 20
35 – 39
 14
 13
 27
30 - 34
 13
 18
 31
25 - 29
 21
 15
 36
20 - 24
 18
 21
 39
15 - 19
 27
 30
 57
10 - 14
39
26
65
 5  -  9
 31
 27
 58
 0  -  4
 14
 26
 40
TO­TAL
224
221
445

           
Observa-se que nas faixas etárias de 10 até 75 anos, a pi­râmi­de po­pu­la­ci­onal apre­senta uma configuração que pode ser considerada nor­mal, mas que abaixo disto inicia um declínio, mais acentuado no lado mas­culino. Não dis­po­mos de dados sobre a mortalidade infantil. Mas veremos a seguir que o processo de se­dentarização iniciou em 1982, ou seja há dez anos. Uma das consequências disto apa­rentemente tem sido uma drás­tica redu­ção no número de nascimentos, ou um au­mento do ín­dice de mortali­dade in­fantil, ou ambas as coisas. Várias pessoas informa­ram que "antigamente" (antes de 1982) quando ainda "viajavam", nin­guém tinha doenças, as mulheres pa­riam e pouco depois já esta­vam an­dando de novo, não faltava co­mida. Hoje (após 1982) está tudo dife­rente, muitas pessoas estão doentes, a mulher grávida precisa de médi­co, de hospi­tal, e todo mundo passa fome.

Perguntando sobre a diminuição do número de filhos, vári­os ci­ganos res­ponde­ram que era por causa da po­breza e da miséria em que vivem hoje, pelo que não é mais possí­vel sustentar tantos filhos como an­tes, quando eram nôma­des, e mais ricos. Mas houve também quem acu­sas­se médicos de uma materni­dade local de esterilizar mulhe­res ci­ga­nas. Pelo menos umas dez mu­lhe­res já fi­ze­ram cesariana, e parte destas mu­lheres teve as trom­pas li­gadas. Em pelo me­nos três casos, a laqueadura foi feita sem conheci­mento e sem con­senti­mento do ca­sal, apresentando os médi­cos depois uma mistura de justifica­tivas médi­cas e soci­ais (do tipo: "a se­nhora poderia morrer se ti­vesse outro filho" e "a senhora não tem condições de criar mais outros filhos"). Outra cigana esterilizada, no entanto, elo­giou a atitude dos médicos e con­firmou que, pelo menos no seu caso particular, a laqueadura real­mente ti­nha sido necessá­ria por motivos médicos e que tinha con­cor­dado antes.

O problema é que, como pudemos observar em outras oca­si­ões, os ci­ga­nos, salvo rarís­simas exceções, e mesmo assim apenas quando por nós pro­voca­dos, não costu­mam denunciar nem criticar pessoas das quais de­pen­dem para obter benefí­cios ou fa­vores (p. ex. políticos e mé­dicos), ou que eventual­mente possam preju­dicá-los (p.ex. cer­tas autoridades polici­ais), mesmo quando estas pessoas agem ile­galmente. A esteriliza­ção in­voluntária de mu­lhe­res ci­ga­nas tal­vez me­re­cesse uma in­vestigação mais deta­lhada por pes­soas compe­ten­tes da área médica.


O direito à cidadania.

O nosso pequeno questionário usado para o recenseamento não in­da­ga­va sobre certi­dões de nascimento e outros documentos. A questão surgiu quando, durante o re­censeamento, alguém pediu a nossa colabora­ção para re­gis­trar seus filhos. A partir de então passamos a pergun­tar tam­bém sobre os registros dos filhos. Constatamos que pelo menos 72 meno­res não tinham certi­dão de nasci­mento. Na reali­dade este nú­mero é bem maior, já que não inves­tiga­mos o as­sunto desde o início, em todas as casas. Sem certi­dão de nasci­mento, não há acesso às escolas ou aos hos­pitais públicos.

Em julho de 1992 esteve em Sousa o "Programa Cidadania", do Go­verno do Estado, que em toda a Paraíba visa documentar devi­damente a po­pula­ção de baixa renda, fornecendo gratui­tamente certi­dões de nasci­mento e cartei­ras de identidade e profissionais. Desconhecemos os mé­todos de traba­lho adotados pela equipe do Progra­ma Cidadania, mas apa­rente­mente foram distri­buídas fi­chas nu­meradas, como se fosse um fa­vor de algum político local. Apenas um único cigano obte­ve três fichas para fazer o registro de seus filhos, e mesmo assim nada conse­guiu, porque o juiz se negou a autori­zar os registros. O que deveria ser um direito de to­dos, inclusive garantido por Lei, vi­rou um favor para al­guns poucos.

[1]. Reprodução parcial de F. Moonen, Ciganos Calon no Sertão da Paraíba, João Pessoa, MCS/UFPB, Cadernos de Ciências Sociais 32, 1994, 54pp.

Diante disto procuramos o cartório de registro, cujo proprie­tário nos in­formou que "mesmo se o juiz mandasse, não fa­ria mais ne­nhum registro de graça". O juiz, por sua vez, quando por nós entrevistado, dei­xou claro que a "Justiça" local cria tantos obstácu­los e faz tan­tas exi­gências que na prá­tica se torna im­possí­vel um cigano pobre re­gistrar seus fi­lhos. Por isso, a maioria dos meno­res e adolescentes ciganos conti­nua sem regis­tro de nascimento, e por causa disto sem direito a es­cola, a hospital e a ou­tros bene­fícios so­ciais. Na realidade, em Sousa ci­gano só se torna cida­dão brasi­leiro ao alcançar a maiori­dade, e mesmo as­sim ainda tem que espe­rar até a pró­xima eleição e pedir a algum políti­co o favor de provi­denciar a docu­men­ta­ção ne­ces­sária para obter seu título de eleitor. E en­tão a única exi­gência é o voto! Para melhorar a si­tua­ção dos paraibanos ciganos, a primei­ra exigência será ga­rantir o seu direito à cidadania brasi­leira, desde o dia de nasci­mento.


Economia.

Antes de na década de 80 abandonarem a vida nômade e semi-nô­ma­de, os 450 ci­ganos atualmente seden­tarizados na cidade de Sousa, vivi­am basi­ca­mente do comércio de "animais" (isto é, de equi­nos: cava­los, jumentos, bur­ros) ou de objetos industrializa­dos, especi­almente ar­mas. Não consta que tenham sido produtores de artesanato de qualquer espécie. Nunca, tam­bém, trabalharam em atividades cir­censes, nem em par­ques de diver­sões. As mu­lhe­res comple­ta­vam a renda familiar prati­cando a quiro­mancia ou rezando "orações" para prote­ger a pessoa contra do­enças, mau-olhado e outros males. Mas a prin­ci­pal fonte de renda era o comércio am­bu­lante prati­cado pelos ho­mens. A área de pe­ram­bulação era o interior da Para­íba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.

Na época, este comércio proporcionava aos ciganos uma vida bas­tante confor­tável. Existiam até ciganos ricos como, por exemplo, um antigo chefe, avô de um dos atuais chefes de Sousa. Segundo vários infor­mantes mais ido­sos, este chefe possuia "uma cruz em ouro 18 ma­ciça", muitas jóias e moedas de ouro, es­poras e arreios de cavalo em prata le­gítima, etc. Mesmo dando o devido desconto para eventuais exa­geros históri­cos, não resta dúvida al­guma que era um cigano rico.

As informações são contraditórias quanto à época em que co­meçou o declínio. O chefe teve seis filhos, um deles hoje resi­dente em Sousa. Segundo al­guns informantes, este chefe era "mão aberta", genero­so demais, e muitos ciga­nos se aproveitaram disto e ele fi­cou pobre ainda em vida; segundo ou­tros foram os fi­lhos que não souberam ad­ministrar a riqueza após o faleci­mento do pai. Seja como for, hoje todos os descen­dentes vivem na miséria abso­luta.

Não temos informações sobre outras famílias tão ricas. A ri­queza do ci­ga­no citado acima talvez tenha sido uma exceção, mas não resta dúvida al­guma que todas as famílias ciganas anti­ga­mente viviam numa situação bem mais con­fortável do que hoje.

Talvez por causa do empobrecimento, em épocas mais re­cen­tes nem sempre vi­ve­ram exclusivamente das atividades comer­ciais. Tam­bém lem­bram, com saudade, os "bons tempos" em Pau dos Ferros, no Rio Grande do Norte, onde residi­ram vá­rios anos numa fazenda e cons­trui­ram açudes e barragens, mas informam ter traba­lhado tam­bém em ativi­dades agrí­co­las: plan­tio e colheita de ar­roz, feijão, milho e outros produ­tos.

Os ciganos sabem que esta vida nômade de ou­trora aca­bou de­finiti­va­men­te: "Deus deu um tempo para o cigano an­dar, e outro para morar ......... agora Deus disse para nós parar". Segundo outro infor­mante dei­xa­ram de an­dar "porque foi vontade de Deus, foi tudo conce­bido por Jesus". Só alguns pou­cos ciganos pare­cem ter consciência das reais causas de sua sedentarização.

Em primeiro lugar pode ser citada a industrialização do Brasil a partir da déca­da de 60 quando, inclusive, co­meçou, em escala maior, a pro­dução na­cional de automó­veis, caminhões, ônibus e tratores. Sempre mais o uso de ani­mais de transporte ou de tração se tornou supérflua. Hoje, quase só a popu­lação pobre ainda utiliza o tipo de equi­nos comer­cializa­dos pelos ci­ganos, para carre­gar água, le­nha ou pro­du­tos agríco­las.

Ao mesmo tempo iniciou-se a construção das rodovias e com isto surgiu outra im­por­tante mudança para os ciganos. Segundo eles pró­prios in­formam, muitos dos fa­zendei­ros que anti­ga­mente hospeda­vam ciganos, ofere­cendo-lhes empregos temporá­rios (p.ex. a constru­ção de açu­des, trabalho nas épocas de plantio e colheita, etc.), ou que da­vam algu­ma assis­tência tem­porá­ria (água, ali­mentação, ou autoriza­ção para acampa­mento), hoje não residem mais nas suas proprie­da­des, mas pre­feriram o conforto de cidades grandes muitas vezes distan­tes. Hoje as proprieda­des rurais são adminis­tradas por ca­patazes que nada fa­zem em favor dos ciga­nos. Capataz tam­bém não compra ou troca animal, nem dá em­prego. Ao que tudo indica, foi este êxodo dos propri­etários rurais para as gran­des cida­des um dos principais motivos pelos quais os ciganos tiveram que aban­donar a sua vida nômade, ou seja, foi a causa princi­pal de sua seden­tarização. Mas se­den­tarização não significa, ne­ces­sariamen­te, também pauperização. Tanto na Europa quanto no Brasil existem ci­ganos se­dentá­rios ricos.

Os melhoramentos nos meios de transporte fizeram aumen­tar tam­bém o número de es­ta­belecimentos comer­ciais nas vilas e nas ci­dades do in­terior, outro fator que resul­tou na desvalo­ri­zação do comér­cio am­bu­lante ci­gano. Viajar dei­xou de ser uma aventura e mesmo as vilas e sítios me­nores passaram a ser servi­dos por uma linha de ônibus ou outro tipo de trans­porte coletivo. Hoje quase todas as pessoas prefe­rem fazer suas compras nas cida­des pró­xi­mas, onde en­con­tram produ­tos de melhor quali­dade, maior varie­dade e preços mais baratos.

Todos estes fatores fizeram com que o tradicional comércio am­bu­lante cigano se tornas­se aos poucos sempre menos rentável. Diante disto, a sedenta­ri­zação nas proximi­da­des de uma ci­dade maior, para muitos ciga­nos se tornou a única saída. Ou seja, a nosso ver, não foi a sedentarização que causou a pro­leta­rização, mas foi a proletariza­ção, foi o empobrecimen­to que obrigou os ci­ganos de Sousa a aceitar uma vida sedentá­ria. E por causa disto, na década de 80, três grupos ciganos se fixaram sucessiva­mente na cidade de Sousa. Hoje totalizam cerca de 70 famílias nucleares e 450 pessoas.

Os homens, ao serem questionados sobre suas atividades e ha­bili­dades profissi­o­nais, em sua quase totali­dade respondem que não sa­bem fazer outra coisa a não ser "negociar” animais ou pe­quenos obje­tos. Mas se este pe­queno comércio já era difícil na zona rural, pior ainda é a si­tu­ação na ci­dade. A popu­la­ção urbana não precisa de ani­mais; o comércio de armas é ilegal e tem de ser feito às es­condidas; tro­car ou vender objetos usados como um relógio, um radio, um conjunto de som ou uma televisão nunca dá muito lucro; encon­trar otários que com­pram caro um objeto ba­rato é quase impossí­vel. Conforme um ci­gano: "a gente com­pra aqui mesmo na bi­jou­teria uma pul­sei­ri­nha ou um colar, e depois vende como se fosse de ouro". Mas para um pe­queno ne­gó­cio como este dar algum lu­cro, obvi­amente será necessário en­con­trar um com­pra­dor não muito esperto. Dificilmente um mo­rador de Sousa ainda cai nesta armadi­lha pelo que as vítimas são nor­mal­mente os habitantes dos sítios rurais em visita à cida­de. Mais tarde, natural­mente, estas pessoas descobrem que foram enganadas e ninguém pode culpá-las por terem pre­con­ceitos contra ci­ganos. Daí porque, mesmo na ci­dade, o mercado de trabalho para os ciga­nos comerciantes, está di­minuindo sem­pre mais.

A situação piora ainda mais devido à falta quase total de qualifi­ca­ção pro­fissio­nal, apesar de vários informan­tes afirmarem categori­ca­men­te que "cigano é muito inteligente, sabe fazer qual­quer coisa, logo ele aprende......". Aos poucos, no entanto, nossas observa­ções nos leva­ram a desconfiar que os ci­ganos não conse­guiram aprender tudo que deve­ri­am ter aprendido para so­bre­vi­ver como comer­ciantes e que talvez mais do que os fatores acima cita­dos para ex­plicar sua seden­ta­rização, a sua falta de escola­ridade e de preparo pro­fissional tenha sido a princi­pal causa de sua fa­lên­cia como co­merciantes e de seu em­po­brecimento. Tudo in­dica que, pelo me­nos os ci­ganos de Sousa, foram derro­tados também, e talvez até principalmente, por sua in­ca­pacidade de lidar com números e em conse­quência disto, com a inflação que castiga o Brasil há dezenas de anos.

No Brasil, a inflação existe há muito tempo, mas para a nossa análi­se basta recor­dar a in­flação desde a época em que Sousa foi esco­lhida como "ponto fixo" por pelo me­nos três grupos ciganos, na época ainda nômades e semi-nôma­des. Principalmen­te a partir da década de 80, a in­flação assumiu proporções ca­tas­tróficas a ponto de ser calcu­lada em bi­lhões de porcentos (segunda a revista Veja, de 09.06.93, de 1980 a 1993 a inflação brasileira foi de 146.219.946.300%). A moeda nacio­nal mu­dou quatro ve­zes de nome, cada vez tirando-se três zeros da moeda an­terior; as TV's não se can­sam de mostrar que nin­guém sabe mais o preço e o valor das coisas, nem de uma simples caixa de fósforos, de um pão francês ou de um quilo de batata, para não falar de obje­tos indus­triali­za­dos como ves­tuário ou eletrodomésti­cos. 

Boa parte da população brasileira soube adaptar-se, a ponto de se falar, inclu­sive, na exis­tência de uma "cultura inflacio­nária". Mas qualquer comerci­ante que queira sobre­viver num país com uma "cultura inflacioná­ria" e uma in­flação permanente de algumas de­zenas de por­cen­tos ao mês, no mí­nimo terá que en­tender algo de cálculos, terá de saber as quatro operações básicas: somar, sub­trair, dividir e multiplicar. Os ci­ganos, devi­do à sua vida nô­made e por outros moti­vos, não costu­mavam fre­quentar escolas, mas ape­sar disto, muitos aprende­ram a ler e a es­cre­ver. Mas tudo indica que nunca aprende­ram corre­tamente a calcular. Em 1993 fize­mos um pequeno teste com sete ciganos adultos, três dos quais ti­nham estudado no primeiro grau; os outros qua­tro nunca fre­quentaram uma escola, mas sabiam razoa­vel­mente ler e escrever. Nenhum deles, no entanto, sabia corretamente fazer cálculos, nem os mais simples.

Os fatores macro-econômicos citados no início deste capí­tulo (industrialização, mecani­zação rural, êxodo dos proprietários rurais, au­mento do número de estabeleci­men­tos comerciais no in­terior, etc), sem dúvida algu­ma, contribui­ram para a sedentari­za­ção e o empobre­cimento dos ciganos, não so­mente aqui no Brasil, mas comprovada­mente tam­bém na Europa. No entanto, os testes que realizamos com estes sete ciganos provam que com cer­teza não foram os únicos cul­pa­dos. Acreditamos que uma das causas da falên­cia do comércio ambu­lante ci­gano te­nha sido também a sua precária es­co­laridade (para a maioria a ausência total de es­co­laridade), que não apenas os tornou comer­ciantes des­qua­lifica­dos num país com uma cons­tante infla­ção alta, como também os torna, ainda hoje, mão-de-obra des­qualificada para a quase tota­lidade dos empregos ur­banos. As causas macro-econômi­cas são irrever­síveis; a falta de escola­ridade tem solu­ção.

Ao perguntarmos aos homens sobre as suas fontes de renda atuais, so­bre como con­se­guem comprar comida, roupa, etc., a res­pos­ta, quase sem exce­ção, era que de vez em quando faziam "algum ne­gócio" (quase nunca clara­mente es­pecificado). Só alguns poucos ciganos são assalariados. Em todos os casos trata-se de em­pre­gos pú­blicos, conseguidos como favor po­lítico. Um ciga­no, por exem­plo, trabalha na Rede Ferroviária, ou­tro na CAGEPA (Companhia de Água e Esgotos da Paraíba), e recente­mente o novo prefeito con­tra­tou quatro ciganos para vigiar um gi­násio de esportes, localizado perto dos ranchos ciganos e que, em­bora de cons­trução recente, se encon­tra em completo aban­dono. O salário destes vigias é irrisório, menos do que um salário mí­nimo, a ser dividido entre os quatro! 

Apesar da baixa remuneração, são estes os empregos cobi­ça­dos por to­dos, por não re­quererem qualificação profissional al­guma. O pro­ble­ma é que não existem muitos destes empre­gos dis­poníveis em Sousa. Aliás, na cidade quase não existe oferta de emprego para nin­guém, ci­gano ou não-ci­gano, fato agrava­do ainda mais pela recessão econômica e pela sêca que as­so­lava a região em 1992/1993. Não dispomos de dados estatísticos, mas tudo indica que existe uma altíssima per­cen­tagem de desempregados na região como um todo.

Os ciganos, obviamente, costumam atribuir o seu desem­prego à dis­cri­mi­na­ção pela socie­dade não-ci­gana, e não à sua falta de qualifi­ca­ção pro­fissio­nal. Não negamos que existem este­reótipos negati­vos sobre os ci­ganos. E por causa da má fama que os ci­ganos gozam na regi­ão, é ló­gico que o indus­trial, o empre­sário, o constru­tor ou o comerciante que precisar de mão-de-obra não-qualifi­cada, dê preferência à contra­tação de não-ciga­nos, mesmo para serviços avul­sos.

Aparentemente não falta vontade de trabalhar. Inúmeras ve­zes ho­mens nos pediram para falar com a pessoa X ou Y para "arrumar um empre­go". Ao in­dagarmos sobre "que tipo de empre­go?", a resposta, quase invaria­velmente era, "qualquer um, mas vê se êle não precisa de um vigi­lante". A pre­ferência pela "profissão" de vigilante tem sua ra­zão de ser, não porque ela não exige qual­quer habilitação profissional, mas prin­cipalmente porque ela justi­fica que a pessoa ande ar­mada e talvez até consiga o tão desejado porte de armas.

Em Sousa não é se­gredo para nin­guém que muitos ciganos pos­suem ar­mas. Mas para andar armado na ci­dade, sem ser incomodado pela polí­cia, o porte de armas é talvez o docu­mento mais cobiçado. Pelo menos uns dez ho­mens nos pediram para falar, em João Pessoa, com o Secretário da Segu­rança Pública, ou com o Procurador da República, para lhes con­seguir um porte de armas.

Na prática, não há trabalho assalariado para os homens, nin­guém pos­sui terras para plan­tar, e as atividades comerciais são quase inexisten­tes. Diante disto, uma impor­tância funda­mental as­sumem as atividades econômi­cas fe­mini­nas, por­que, ao que tudo in­dica, hoje são basi­camente as mulheres que susten­tam as fa­míli­as, que conseguem o feijão e o arroz de cada dia, e às vezes algum pouco "tempero" (carne, peixe). Logo cedo pela ma­nhã, en­quanto a maioria dos ho­mens ainda está dormindo ou joga bara­lho "para passar o tempo", as mulhe­res já estão a caminho do centro de Sousa (menos de três quilômetros de dis­tân­cia) onde se dedicam princi­palmente à mendi­cância: "a gente conse­gue um pouco de feijão aqui, um pouco de arroz ali; vai juntando até dar para uma refeição".

Durante a nossa pesquisa, nenhuma cigana pediu para "ler" a nos­sa mão. Afir­mam que ainda dominam a arte da quiromancia, mas como já estão há tanto tempo em Sousa, provavel­mente já "leram" a mão de cada habitante umas cinco ve­zes, e nin­guém aguenta mais. Só fazem isto de vez em quando, se encontrarem uma pessoa des­co­nhecida. Da mesma forma, ne­nhuma ci­gana puxou uma bola de cris­tal, um tarô, e menos ainda pedras ru­nas, para ga­nhar algum dinheiro às nossas custas.

Também as mulheres afirmam que sabem fazer "muitas coi­sas", como, por exemplo, cro­chê e renda. Só que não vimos ne­nhuma mulher fa­zendo crochê ou renda. Enquanto isto, no dis­trito vizinho Aparecida, a cerca de 20 km. de dis­tância, encontram-se dezenas de moças e mulhe­res fazendo crochê, durante o dia todo, em qualquer es­quina do lu­garejo ou sentadas na frente de suas ca­sas. Resta, portanto, apenas a mendi­cância, praticada quase que exclusiva­mente pe­las mu­lheres. Apenas alguns pou­cos homens, geral­mente velhos, viúvos ou com pro­blemas mentais, tam­bém pe­dem esmolas; os outros, quando de suas idas ao centro de Sousa, fi­cam pa­rados junto ao pré­dio da TELPA, espe­rando pes­soas para trocar ou vender algum objeto ou animal, ou para arrumar algum serviço.

Ao que tudo indica, muitos ciganos de Sousa incorporaram o dis­curso da "discriminação ge­neralizada contra os ciganos", e por causa disto nada mais fa­zem para conseguir um emprego ou um trabalho avul­so: "Não adianta, doutor, ninguém nos dá em­prego; por isso a gente nem pro­cura mais". O que aparente­mente existe é uma imensa apa­tia, uma enorme falta de força de von­tade de ven­cer na vida, por muitos não-ciganos, com ou sem razão, interpre­tada como "preguiça".

Esta opinião é partilhada também por um chefe cigano de outra ci­da­de da Para­íba. Para ele, os ciganos de Sousa seriam "acomodados": "de cada cem, uns vinte trabalham, e os outros ficam dependendo". A origem desta de­pendên­cia pro­vavelmente seja o alto valor que, ainda hoje, os ciganos dão à família ex­tensa e ao chefe. Um bom chefe é aquele que não apenas de­ci­de por seu povo, mas que também cuida do seu povo, que arruma ali­men­tos, que paga as consul­tas médicas e compra os re­médios, que resolve os problemas com as autoridades locais, etc. Este va­lor cultu­ral, ob­viamente, tem seu lado positivo, por­que - como eles pró­prios di­zem - ninguém passa fome (a não ser quan­do to­dos pas­sam fome, um fenôme­no sempre mais fre­quente). Mas o lado negativo deste pater­na­lismo, com certeza, tem sido o estímulo ao aco­modismo, à falta de es­pírito de inicia­tiva, à passi­vidade de boa parte dos homens ciganos de Sousa.

Naturalmente, os ciganos negam isto e fazem questão de di­zer que são esforça­dos, tra­ba­lhadores, etc. O problema é apenas que não apre­sentam as provas disto. Com ex­ceção lou­va­vel para os ciganos que sonhavam fundar um con­junto musical, não ob­servamos nenhuma iniciativa para melhorar de vida. A quase tota­lidade dos ciga­nos fica esperando que Deus, Jesus, Nossa Senhora, Padre Cícero, São Francisco das Chagas, frei Damião ou, na falta deles, algum po­líti­co, algum pro­curador ou até algum antro­pólogo resolva todos os seus pro­blemas. A pes­soa vence na vida não por esforço próprio, mas com a ajuda de alguma en­tida­de ce­leste, ou de al­gum político ou amigo ter­restre.

Em Sousa existe ainda um problema adicional, observado às vezes tam­bém na Europa: a presen­ça, num determinado local, de um nú­mero ex­cessivo de ciga­nos, que quase todos se dedicam à mesma profissão. Em Sousa encon­tram-se 126 homens de 15 a 64 anos de idade, que só sabem fazer uma única coisa: ne­gociar animais ou pequenos objetos, e um nú­mero quase igual de mu­lheres que ape­nas sabem mendigar. Metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro ou Recife talvez fos­sem capazes de ab­sorver tama­nha população não-quali­ficada ci­gana, mas isto é simples­mente impos­sível numa pequena cidade como Sousa onde um em cada cem habitantes é cigano.

Não acreditamos que em Sousa os tradicionais valores culturais tenham con­tri­bu­ído para o alto grau de desem­prego entre os homens. Os homens não traba­lham em atividades independen­tes, como autônomos, porque suas atividades tra­dicionais deixa­ram de ser rentáveis e nunca aprenderam ou se interessa­ram em aprender ou­tras ativida­des; os homens não são operários as­sala­riados não por­que não que­rem, mas porque não existem suficientes em­pregos assalari­a­dos, e mesmo quando existem, nin­guém emprega um ci­gano.

Voltar à vida nômade em grupo está fora de cogitação, mas vá­rios ci­ga­nos de­monstra­ram vontade de iniciar o que Liégeois chama de "comércio mó­vel", tendo a cidade de Sousa como ponto fixo. Não seri­am mais viagens em grupo, mas viagens individuais; mulheres e crian­ças fica­riam em Sousa, inclu­sive por cau­sa dos estudos dos filhos.

Acontece, porém, que os ciganos de Sousa estão completa­mente des­capitaliza­dos e não é possível alguém iniciar um co­mér­cio móvel ou uma mi­cro-empresa sem capital ini­cial. Mas so­mente capitalizar os ci­ganos não basta. Como já vimos acima, também seria necessária uma "reciclagem ma­temá­tica"; os ci­ga­nos teriam que aprender a li­dar com números, seja fa­zendo contas com lápis e papel, seja com máquina de calcular. E final­mente, especialistas em micro-empre­sas teriam que en­sinar aos ciganos como fazer bons negócios num país com uma cultura inflacio­nária (pelo menos até 1995).


Educação.

A quase totalidade dos ciganos adultos de Sousa nunca fre­quentou uma esco­la. Exceção é, por exemplo, L. de 45 anos de idade, filho de um dos chefes e aluno do Curso de Direito, único curso superior minis­trado em Sousa pela Universidade Federal da Paraíba. Ou­tro adulto já con­cluiu o Segundo Grau e tentou (mas não conseguiu) ingressar no mesmo Curso de Direito em 1992 e 1993.

O fato de os ciganos de Sousa nunca terem frequentado os ban­cos esco­lares não si­gnifi­ca que todos sejam analfabetos. Boa parte dos adultos (e tam­bém dos menores) de­clara saber ler e es­crever. Talvez não saibam ler e es­crever com facilidade, mas possuem os co­nhecimentos bási­cos, apren­didos por esforço pró­prio. Não dispomos de nú­meros exa­tos, inclusive porque não foi possí­vel realizar testes, mas acreditamos que quase a terça parte da po­pulação cigana acima de 10 anos de idade tenha pelo menos conhecimen­tos rudimenta­res de leitura e de es­crita, embora não de con­tabilidade (matemática).

Ao contrário do que afirmam muitos autores sobre os valo­res edu­caci­o­nais dos ci­ganos europeus, existe entre os ciganos de Sousa uma desejo enor­me de matricularem seus filhos numa esco­la. Mas ape­nas al­gu­ns poucos conse­gui­ram realizar este sonho, e mesmo assim apenas em parte.

Por ironia do destino, dois dos ranchos ciganos ficam lo­caliza­dos a pou­cos me­tros da Escola Estadual de 1o. Grau Celso Mariz, que ensina do 5o. ao 8o. ano, e da Escola Agrotécnica Federal de Sousa, que ministra um curso de Téc­nico em Agropecu­ária (80 vagas anuais) e ou­tro de Técnico de Economia Do­méstica (40 va­gas anuais). Trata-se de cursos pro­fissionali­zan­tes para alunos que já conclu­íram o Primeiro Grau. Não há registro de ciga­nos es­tudando ou que te­nham frequentado a Escola Agrotécnica. A diretora da Escola Celso Mariz in­formou que no estabeleci­mento já estu­daram alguns ci­ganos e que os mes­mos sempre tive­ram um comportamento exem­plar.

Não dispomos da relação de todos os estabelecimentos de 1o. Grau da cidade de Sousa, mas alguns ficam distantes demais dos ran­chos ciga­nos e ou­tros nem mais são pro­curados por sem­pre terem recu­sado a matrí­cula de ci­ga­nos. Exemplo disto é a Escola Rotary Clube. Ninguém estuda nesta esco­la por­que um dos professo­res ameaçou aban­donar a escola caso al­gum cigano fosse aceito como aluno. Outro exem­plo é a Escola Batista Leite. Parece que a última vez que alguns ciganos tentaram a matrícula nesta escola foi em 1989/90, quan­do rece­beram como resposta: "vocês estudam, mas têm que ar­rumar cinco gali­nhas p'ra nós" (fato citado por vários informantes). Não sa­bemos se esta resis­tência à pre­sença de ciganos nestas escolas parte dos seus dirigen­tes e do­centes, ou se se trata de uma exigência dos pais não-ciga­nos, que não querem ver seus queridos filhos "misturados" com crianças ci­ga­nas. So­bra então apenas a Escola Muni­ci­pal Otacílio Gomes de Sá, com ensino do 1o. ao 4o. ano do primeiro grau.

A Escola Otacílio Gomes de Sá é pe­quena e dispõe de apenas quatro sa­las com ca­paci­dade para 40 alu­nos cada. Em janeiro de 1993, uma das sa­las servia exclu­si­va­mente para guardar algumas dezenas de carteiras quebra­das, mas é possível que seja utilizada para ministrar au­las a partir de março, quan­do do início do período letivo. Embora a es­cola fi­que a apenas pouco mais de um qui­lômetro dos ranchos, só alguns pou­cos ciganos conseguem es­tudar na mesma. A cri­ança cigana sem certidão de nasci­mento (a mai­oria) não tem di­reito à ma­trí­cula. E para aquelas que pos­suem este do­cumento, tudo parece de­pender da sorte. Não tivemos oportunidade de en­trevistar a direto­ra desta esco­la, mas se­gundo vários pais ciganos, a tática da escola é ven­cer pelo can­saço: "volte ama­nhã, volte na semana que vem...", e no final a frase fatal: "não têm mais va­gas". 

Diante disto não é de estranhar que apenas algumas poucas crian­ças ci­ganas tenham conseguido matrícula na Escola Otacílio Gomes de Sá. E des­tas poucas "privilegiadas", várias desistiram no meio do caminho. Pelo menos três meninas desisti­ram de fre­quentar as terceira e quarta séries, pelo fato de estas se­rem minis­tradas à noite. Entre a escola e os ranchos fica uma área de­serta e, não sem motivo, as meninas tinham medo de serem moles­ta­das por ele­mentos não-ciganos da cidade de So­usa.

Por outro lado, constatamos também que os ciganos costu­mam cul­par a discri­mina­ção pela população local por todos os seus males, quando na reali­dade a culpa muitas ve­zes é, pelo me­nos em parte, a sua própria atitude, ou a sua ig­no­rância. Em janeiro, ao rece­bermos a infor­ma­ção de que a Escola Otacílio Go­mes de Sá se recusava matri­cu­lar um menino cigano na segunda série, resolve­mos acompa­nhá-lo à escola para ouvir as explica­ções da direto­ra. Em pri­meiro lu­gar, a ma­trícula nem se­quer tinha co­meçado e só iniciaria em 10 de fevereiro, portanto, nin­guém recu­sou matrí­cula de nin­guém. Em se­gundo lugar, como só depois fica­mos sabendo, o menino tinha abando­nado o curso de alfabeti­zação, e nunca tinha frequentado a primeira série. Mesmo as­sim, o pai pre­tendia a qual­quer custo ma­tricular seu filho na segunda série, "porque ele é muito inteli­gente". Obviamente a ma­trícula deste menino teria sido recu­sada, por moti­vos legais, e não por causa da discrimi­nação.

Em resumo, observamos que: (1) entre os ciganos de Sousa exis­te uma enor­me vontade de matricular seus filhos numa escola; (2) existe tam­bém entre as crianças uma enorme vontade, para não di­zer ansie­dade, de fre­quentar uma esco­la; (3) mas apenas algu­mas poucas crianças es­tudavam ou já estuda­ram em esco­las da rede pública, (a) por causa da discrimi­nação dos ciga­nos pela popu­la­ção local, (b) por falta da docu­mentação neces­sária, e (c) por moti­vos de segu­rança (aulas noturnas para alu­nos das ter­ceira e quarta sé­ries de 1o. Grau!).

Como estes problemas existem há pelo menos dez anos, cons­tatamos uma de­manda educacional reprimida: entre os 123 menores ci­ga­nos de 5 a 14 anos, havia pelos menos uns cem ansio­sos para rece­ber ensino formal de pri­mei­ro grau, e a quase totali­dade deles teria que ini­ciar a partir da alfabeti­za­ção. Desde já deve ser óbvio que a Escola Ota­cílio Gomes de Sá, mesmo se ti­vesse a maior boa vontade, com suas qua­tro salas de aula, seria in­capaz de resol­ver este proble­ma.

Entre os ciganólogos europeus predomina a idéia que o ideal seja uma escola só para as crianças ciganas. Outros, entre­tanto, de­fen­dem a esco­la mista (ciganos e não-ciga­nos), pelo fato de ela ser uma ma­neira - e talvez a única - de diminuir ou até aca­bar com os preconceitos con­tra os ciganos. Di­ante disto per­gun­ta­mos aos ciganos - aos adultos e aos poucos adolescentes e me­no­res que já fre­quenta­ram uma escola - sobre a sua preferência. Quase por unanimi­dade a res­posta era uma esco­la somente para os ciganos. Apenas um menino cigano estava a favor da esco­la mista, e em pou­cas pala­vras resumiu as vanta­gens: "porque lá eu tinha amigos". E amigo de escola, geralmente é amigo para sem­pre. Cem cri­anças ciganas numa escola mista podem si­gnifi­car qua­trocen­tos ou mais ami­gos no futu­ro, e como estes amigos também têm paren­tes e ami­gos não-ciganos, cada criança cigana ma­triculada numa esco­la mista no futuro pode si­gnifi­car cerca de dez ou mais pes­soas sem preconcei­tos contra ciganos. E en­quanto não conseguir­mos acabar com os preconcei­tos e as dis­criminações contra os ci­ganos, nunca também encontraremos uma solução de­fini­tiva para os inúme­ros pro­blemas atual­mente enfrenta­dos pelo povo cigano.

O assunto é discutível, mas de qualquer forma, uma escola só para ciga­nos exigiria a constru­ção de um pré­dio escolar novo e a devida forma­ção de pelo menos alguns profes­sores ci­ganos (porque nestas esco­las o ensino cos­tuma ser bilín­gue), o que leva­ria muito tempo. E os ci­ganos de Sousa ne­cessi­tam uma so­lu­ção de emergência a curto prazo, a sa­ber, uma escola (alfabetização e as pri­mei­ras séries do 1o. Grau) para uma centena de crianças e para vários adoles­cen­tes e adultos ciga­nos.

Diante disto, ainda no início de fevereiro de 1993 foram toma­das duas medi­das práticas. Em primeiro lugar, para possibili­tar a matrí­cula de pelo me­nos uma parte das cri­anças ciganas na Escola Otacílio Gomes de Sá, ou em ou­tra es­cola de primeiro grau, a Procuradoria da República na Paraíba forneceu aos ci­ga­nos formulários individu­ais de matrícula, de­vendo a di­retora da Escola, em caso de recusa, menci­onar por escrito o moti­vo da mesma. Nenhum ci­gano pre­cisou devolver o formulário. Em se­gundo lugar, com apoio da dire­tora da Esco­la Estadual de 1o. Grau Celso Mariz, situada a pou­cos metros dos ranchos ciga­nos, e pos­terior autoriza­ção da Secretaria de Educação e Cul­tura do Estado da Para­íba, foram aproveitadas três salas ocio­sas desta escola para a alfa­betiza­ção e a 1a. Série do 1o. Grau. A quase tota­lidade das crianças ciga­nas preferiu estu­dar na Escola Celso Mariz. Não dis­pomos ainda de nú­meros exa­tos, mas em abril de 1993, a di­re­tora estimou que cerca de 80 a 100 crian­ças ciganas estavam ma­tri­cu­ladas, com a dis­pensa provisória dos documentos normal­mente exigi­dos, em classes mistas, junto com ou­tras crianças não-ciga­nas da área. Ao curso de alfa­betização deve­rão seguir-se, nos próximos anos, as séri­es normais do Primei­ro Grau. Uma van­tagem adicional é que esta escola não se li­mi­ta apenas ao ensi­no teó­rico, mas dis­põe, ainda, de uma ampla ofi­cina na qual ensina aos alu­nos ha­bi­lidades téc­nicas, além de cur­sos de datilo­grafia e corte-e-costura.

Existe, ainda, um número razoável de adolescentes e adul­tos can­dida­tos ao "Curso Supletivo", para o que se exige a alfabe­tização e idade mínima de 16 anos. Em 1993, vári­os ci­ga­nos se matri­cularam no "Supletivo", e neste curso ninguém constatou discriminação alguma con­tra ci­ganos; todos se matricula­ram sem o menor problema.

Com estas medidas, o problema escolar dos ciganos de Sousa parece em boa parte re­solvido e hoje só não estuda quem não quiser. Mas apesar dos avan­ços obtidos na cida­de de Sousa, conti­nuam inalte­rados - e desconheci­dos - os problemas escolares dos outros ciganos se­den­tários, semi-sedentários e nômades do Estado da Paraíba. Podemos supor que também em outras cida­des existam preconceitos e discriminações, além de exigências impos­síveis de se­rem satisfei­tas pelos pais ciganos, como a apresen­ta­ção de registros de nasci­mento, paga­mento de matrículas, com­pra de fardamento e material es­colar, frequência regu­lar às au­las (impossível no caso de ciganos seminôma­des e nôma­des), etc. Nada, também, se sabe do aproveitamento esco­lar das cri­anças ciganas, de eventuais problemas com colegas não-ciganos, discri­minação por pro­fesso­res, etc.


Os ranchos.

Em Sousa os acampamentos ciganos são conhecidos como "ranchos". Como já vi­mos, existem três ranchos distintos, os ran­chos A e B, localizados vi­zi­nhos às Escolas Celso Mariz e Agrotécnica Federal, e o ran­cho C, a cerca de um quilômetro de distân­cia, vizinho ao Parque de Exposi­ção de Animais. Embo­ra construídos na periferia, a distân­cia até o centro da cidade é de cerca de três qui­lômetros apenas.

Nos três ranchos, quase todas as casas, mesmo as de taipa, têm ener­gia elétrica, mas ne­nhum dos ranchos tem saneamento básico; ne­nhuma la­ta­da ou casa de taipa possui sanitário, nem dentro, nem sepa­rado da habitação; não há re­colhimento de lixo; as condi­ções de higiene são as piores possíveis.

O rancho A tem 16 casas (quase todas de taipa e algumas "latadas", mas ne­nhuma de al­venaria) e é chefia­do por JVA, 43 anos, que se fi­xou no lo­cal em 1982. Cinco casas foram cons­truídas em dois pe­que­nos terrenos com­prados pe­los ciganos em 1992. No meio da rua, existe uma única tornei­ra d'água que abaste­ce todos os morado­res.

A cerca de 50 metros de distância fica o rancho B, chefi­ado por VVN, 71 anos, que fixou residência definitiva no local em 1986/87. VVN, embora nascido em Sousa de famí­lia não-cigana, casou com a fi­lha de um chefe cigano e há muito tempo é mais cigano do que muitos ciganos na­tos. O seu rancho conta com 21 casas, três das quais de alve­na­ria, inclusive a sua própria, comprada de um não-cigano. Neste rancho existem duas tornei­ras para o abas­teci­mento de água; no ter­raço da casa de VVN existe um tele­fone público.

O rancho C, a quase um quilômetro de distância, construído no iní­cio da década de 80 (1982?), é o maior e tem 35 casas, sendo qua­tro de alve­naria, três "latadas" e as ou­tras casas de taipa. Possui uma única torneira de água, mas to­das as casas deste ran­cho já tiveram água en­canada. Como quase nunca che­gava água, os moradores deixa­ram de pagar suas contas e por causa disto um ex-prefei­to, declaradamente anti-cigano, mandou arrancar todas as en­cana­ções, dei­xan­do apenas uma única tor­neira. Mas tam­bém esta, pelo menos em 1993, quase não for­necia água, aparentemente devi­do a um pro­blema téc­nico. Diante disto, as pessoas iam buscar água no rancho B. Tam­bém no rancho C, uma das casas de alvena­ria possue telefone pú­blico. Al­guns lotes de terrenos foram com­prados, mas a quase totalidade das casas foi constru­ída em área "doada" (sem docu­mento escrito) pelo ex-deputado Gil­berto Sar­mento, amigo dos ciga­nos. Na realidade os terrenos não pertenciam ao deputado, mas à sua família, que quer os terrenos de volta.

Em Sousa, este rancho é conhecido como o "rancho de PM", 63 anos, que seria o chefe do mesmo. Na reali­dade, não é bem assim. Ape­nas umas dez ca­sais (famílias nu­cleares) per­ten­cem a sua "família", ou "turma", e as ou­tras vinte e cinco às turmas de VVN e JVA. Embora PM seja casado com uma irmã (não-cigana) de VVN, atualmente as relações entre ambos os chefes estão es­tre­mecidas.

A história é um pouco complexa e exigirá alguns esclare­cimen­tos com­plementa­res que, aparente­mente, nada têm a haver com este as­sunto, mas que na reali­dade são funda­mentais para en­tender­mos melhor a situa­ção local. E para en­tender, in­clusive, porque tan­tos ciganos estão em Sousa, e não em outro muni­cípio qualquer da Paraíba ou de Estados vizi­nhos.

Até o início da década de 60 os ciga­nos ainda tinham uma vida nô­ma­de. Acon­teceu então que no muni­cípio de Sousa, em 1962, foi elei­to um prefeito jo­vem, chamado Antônio Mariz. Não sabemos o que este jovem rea­li­zou na épo­ca, mas logo conquistou a confiança e a amizade dos ciga­nos da regi­ão, "porque ele nos tratava como gente". O jo­vem prefeito depois se tor­nou depu­tado fede­ral e se­nador, e sempre continuou tratando os ciganos "como gente", como faz até hoje. Bem diferente, por­tanto, de um certo ex-prefeito que, logo depois de eleito inclusive com os votos ciga­nos, disse que ia man­dar ca­var uma vala para enterrar todos os ciganos de Sousa.

Pelo menos desde então, muitos ciganos nômades se torna­ram se­minô­mades, ou seja, durante semanas ou meses peram­bula­vam pela regi­ão, negoci­ando animais ou armas, mas sem­pre volta­vam a Sousa para perma­nên­cias mais ou menos prolonga­das, em ranchos temporá­rios, com barracas de lona. E desde então (ou seja, há 30 anos!) sempre votaram em Antônio Mariz, ou nos candida­tos por ele indicados. Para os ciga­nos, Sousa é, an­tes de tudo, um domicílio eleitoral, a cidade do ex-prefeito e atual se­nador Antônio Mariz (que possui uma residên­cia na mesma) e que, quando de pas­sa­gem, sempre dá algum apoio aos ci­ganos ou, no mí­nimo, os trata "como gente".

Por coincidência, quando da nossa pesquisa de campo, de janei­ro a abril de 1993, o senador Antônio Mariz foi subme­tido a duas deli­cadas cirur­gias, em São Paulo. Todo dia os ciganos perguntaram sobre o estado de saúde do se­na­dor, os rá­dios do acampamento ficaram ligados só para ouvir notícias a res­peito, imagens do padre Cice­ro e frei Damião foram co­locadas na frente de um ca­len­dário ano 1993 com o retrato do senador, todos re­zaram, promes­sas foram fei­tas. Houve quem ame­acasse de rasgar não somente seu próprio título eleitor, mas tam­bém os títulos eleitores de todo mundo, caso aconte­cesse o pior, porque então tudo estaria perdido para os ciga­nos, e nunca mais ninguém iria votar seja em quem for.

O que Antônio Mariz, em sua longa vida pública, fez a fa­vor dos ci­ga­nos não está muito claro. Ao que tudo indica, não fez nem mais nem me­nos do que aquilo que qualquer político do in­te­rior faz para seus eleito­res, só que in­clu­indo en­tre eles também os ciganos: "Antônio Mariz é o único ho­mem que fala a nosso fa­vor, que nos quer bem", "nós não deixa ele para ninguém", e vá­rias ve­zes ouvimos a já citada obser­vação de que ele trata os ciganos como gente. Mas para nosso tema - os acam­pamentos - importante é a frase: "Enquanto Mariz viver, a gente não sai da­qui" e, se­gundo outro, "Se Mariz morrer, a gente vai-se embora da­qui". Para os ci­ganos terem tanta veneração por Antônio Mariz, ob­via­mente o se­nador deve tratá-los de ma­neira diferente e melhor do que os ou­tros políti­cos da região. [Antônio Mariz faleceu em 1995, pouco depois de ter sido eleito Governador do Estado da Paraíba; os ciganos continuam em Sousa, e continuam votando nas eleições!].

O conflito entre PM e VVN, acima citado, já é relativa­mente anti­go, em­bo­ra ainda não saibamos exata­mente os mo­tivos disto. Mas não resta dú­vida que PM co­meteu um pecado mortal ao can­di­datar-se, em 1992, a verea­dor e apoiar um candidato a prefeito da "oposição", isto é, contrário ao can­didato apoiado por Antônio Mariz. Basta dizer que PM obteve ape­nas 9 vo­tos, o que si­gnifica que nem o seu "povo", nem a sua própria família votou nele. Foi de­pois disto que PM cercou a sua casa, transfor­mando-a numa pe­quena fortaleza que ao mesmo tempo se tornou uma quase-pri­são, da qual dificilmente sai.

Derrotado não apenas politicamente, mas também moral­mente, PM acredita que está ameaçado de morte e que não resta outra solução a não ser sua saída de Sousa. Daí ele solicitar a nossa inter­venção junto às au­toridades com­pe­tentes para resolver este problema. Ao ser per­gun­tado sobre quantas pessoas o acompanhariam, se saisse, a respos­ta foi cerca de dez ca­sais com em torno de cem pessoas. Estes núme­ros foram depois con­firmados por ciga­nos de outro rancho.

A criação de um acampamento (rancho) único para os atu­ais ciga­nos de Sousa en­contra­ria logo um grave obstáculo neste conflito de PM com VVN (e por extensão com JVA). As relações entre VVN e JVA, hoje, são bo­as, me­lhor dito, normais, ou seja ainda sem problemas.

A construção, em Sousa, de uma espécie de "conjunto habi­ta­cional ciga­no" preci­saria de uma área bem maior do que para a popu­la­ção não ciga­na, por­que teria que deixar espaços bas­tante grandes entre as casas a serem constru­ídas para os membros de cada um dos três ranchos. E os construtores teriam que sa­ber exa­tamente quantas casas a construir para cada "família" ou "turma". Temos no­tícias de que pessoas bem in­ten­ciona­das estão plane­jando a cons­trução de "casas para os ciganos", não se sabe ainda aonde, nem como, nem quando, e se estas casas se­rão do­adas, fi­nanciadas etc. Não consta que estes "planejadores" das casas ci­ganas tenham rea­lizado pesquisas a respeito dos problemas, confli­tos e valores cultu­rais ciga­nos, nem sobre o tipo de casa desejada e mais apro­priada para os ci­ganos.

Se este "conjunto habitacional cigano" algum dia sair da pran­cheta (o que duvi­da­mos muito), certa­mente se­rão construídas ca­si­nhas mi­núscu­las, com sali­nhas de al­guns poucos metros quadrados, um ba­nheirinho com vaso sani­tário e um espaçozinho muito bonito para a co­zi­nha, com lu­gar apropri­ado para colo­car um fogão a gás, mas não para a geladeira. Natu­ralmente colo­ca­rão uma casi­nha bem junto à ou­tra, sem es­paço para futu­ras amplia­ções. Certamente nenhum dos plane­jadores e arqui­tetos le­vará em conside­ração que as casas ciga­nas preci­sam de pelo me­nos um amplo espaço (a sala) para hos­pedar eventuais parentes de passa­gem pelo local, às ve­zes por um período bas­tante prolon­gado; nin­guém pensará no fato de os ci­ganos de So­usa não terem dinheiro para comprar fogões ou bujões de gás, e cozinha­rem ape­nas com le­nha, o que quase sempre é feito fora de casa, num terra­ço ou numa latada anexa à casa, especialmente cons­truída para este fim. As ca­sas ciganas preci­sarão de um am­plo terraço coberto, mas com certeza nenhum dos ar­quitetos fi­cou tempo sufici­ente nos ran­chos para es­tudar a posi­ção do sol, e princi­pal­mente a direção dos ventos, para evitar, na medida do possí­vel, que estes en­cham as pa­nelas de comida também com a poei­ra das áreas vizi­nhas, ricas em ex­crementos animais e humanos, e que o calor logo reduz a pó. Com certeza uma das causas de muitas doenças encontradas entre os ciganos de Sousa.

Um problema adicional será: aonde construir este "acampamento" (ou conjunto habitacio­nal) cigano? Nos lo­cais onde estão hoje? O problema é que os ciganos são proprietários apenas de al­guns pou­cos lotes ou casas. A quase tota­li­dade das ca­sas está em terre­nos invadidos. Como a pre­fei­tura local cer­ta­mente não dis­põe de recursos para desapropriar terre­nos, é provável que se pla­neja construir este "conjunto habitacional ci­gano" na área mais perifé­rica possí­vel da ci­dade, de prefe­rência tão distante que os ciganos desistam de in­comodar ainda os habitan­tes da cidade de So­usa.

Além disto, a transformação dos três ranchos num "acampamento ofi­cial", ou o esta­bele­cimento de um novo "acampamento oficial" num ter­reno municipal em outro lugar, na reali­dade si­gnifi­caria a cria­ção de um "acampamento-para-os-ci­ganos-de-Sousa", e não um "acampamento ciga­no", ou seja, um lu­gar onde ci­ga­nos de qualquer ori­gem pos­sam es­tabele­cer-se, por um perí­odo determi­nado ou indefinido, mas sempre temporário, desfru­tando de uma in­fra-estru­tura míni­ma, principal­mente de água e insta­la­ções sani­tá­rias, energia elétrica, assis­tência edu­cacional e médica. Na rea­lidade, as atuais famílias ciga­nas re­sidentes em Sousa teriam o poder de ve­tar o acesso e a per­ma­nência de outros ci­ganos ao local. Tratando-se de uma espaço limi­tado, com recursos limi­ta­dos, conflitos com ou­tras fa­mílias ci­ga­nas seriam inevi­táveis.

Um dos chefes deixou claro que no seu rancho em hipótese al­guma tole­raria a pre­sença de ciganos estra­nhos, isto é, de ciga­nos não pertencen­tes à sua "família". Como ciga­nos inimigos foram citados, por exemplo, os de Caicó, no Rio Grande do Norte, mas prin­cipalmente os de Campina Grande e de Umbu­zeiro, na Paraíba, inimigos mortais. Um en­contro com membros des­tes dois gru­pos si­gnifica certeza de briga, e quase sem­pre morte, como já ocor­reu várias ve­zes em anos anteriores.

A criação de um "acampamento oficial" talvez resolvesse parci­al­men­te al­guns problemas dos atuais ciganos de Sousa, mas de modo algum resol­veria os problemas da população cigana em geral, da Paraíba e de outros ciga­nos de pas­sagem pela Paraíba. Antes pelo contrário. Se­ria uma constante fonte de con­fli­tos. Além disto existiria o perigo de ou­tros grupos ciganos da Paraíba ou até de Estados vizinhos serem expul­sos para o "acampamento" em Sousa.

Ao que tudo indica, as entidades governamentais atual­mente en­volvi­das na questão dos ciganos de Sousa (e apenas os de Sousa, e não os ciganos da Paraíba!) têm baseado sua ação no princípio talvez errôneo que os ciganos de Sousa, se­dentarizados por força das circunstâncias, para sempre queiram ser sedentários em Sousa. A bem da verdade, al­guns líde­res ciga­nos tal­vez tenham dado esta impressão, ao solicita­rem "ajuda" para suas famílias "radicadas" em Sousa. Parece que, em mo­mento algum, es­tas enti­dades te­nham questio­nado junto aos ci­ganos a von­tade de eles deseja­rem voltar a ser ciganos nômades ou semi-nômades, e quais as condi­ções ne­cessárias para isto.

Já vimos acima que os ciga­nos estão em Sousa graças e por causa de Antônio Mariz e que sem a presença do se­nador são ca­pazes de aban­donar a ci­dade e migrar para outro lugar qualquer. A força do sena­dor é tão grande que, se­gundo um dos infor­mantes, inclusive começa­riam a "andar", a "peregrinar" de novo, se Antônio Mariz as­sim or­de­nasse: "Se o Doutor An­tônio Mariz qui­ser, nós anda de novo; (mas) o tempo gas­tou, o que tinha que dar para nós aca­bou". Já vimos também que uma ci­dade pe­quena como Sousa não tem capaci­dade para dar em­prego para tantos ci­ganos.

Os ranchos de Sousa, de fato, dão a impressão de ciganos se­dentá­rios, de ciga­nos que definitivamente aban­donaram a vida nômade. Mas, se­gundo in­for­mam, muitos dos seus parentes ainda andam pelo Nordeste. Por isso, é pos­sí­vel que a solução para os ciganos, de Sousa e da Paraíba em ge­ral, não seja ape­nas criar acam­pamentos oficiais, ou melhorar as condições dos ranchos nos quais vi­vem, mas também, e princi­palmente, criar condições para que pos­sam reto­mar a sua antiga, e por muitos ainda desejada vida nô­made ou semi-nôma­de.

Todas as pessoas às quais perguntamos sobre "a vida de anti­ga­mente", tinham sau­dades da vida nômade, "isto era vida, de pé no chão...", "ninguém tinha doença, a mu­lher paria e pouco de­pois já an­dava de novo; não preci­sava de médi­co"; "hoje não dá mais, existe muita doença, para qualquer coisa ciga­no precisa de médico, de hospi­tal"; "antes sofria mais, mas era mais feliz do que hoje; antiga­mente tinha saúde completa, hoje não tem mais". Antes, todo mundo "tinha fartura, tinha comida, feijão, queijo, ar­roz", que re­cebiam traba­lhando nas fa­zendas ou era doado pelo pes­soal que tinha pena deles. Hoje não tem mais isso, porque "também os do­nos das fa­zendas e dos sítios pas­sam ne­cessidades". Pior ainda:"Hoje somos morado­res; não so­mos mais ciganos". 


Considerações finais.

Em todo mundo os antropólogos têm constatado que pro­gramas assis­tenciais para popu­lações com valores culturais dife­rentes (índios, cam­poneses, grupos minoritá­rios etc.), elabora­dos quase sempre com a maior boa vontade e com as melhores inten­ções hu­manitárias possí­veis, têm resultado em fracassos ou até têm prejudicado as pessoas que se pretendia "ajudar". Existe uma ampla bibliografia antropológica a res­pei­to.

Como os antropólogos quase sempre são chamados depois, para escla­re­cer as cau­sas des­tes fra­cassos, e não antes para estudar como evitá-los, e como quase sempre os cul­pados do fracasso são os adminis­tradores e os execu­tores dos projetos e não as pessoas a serem benefici­adas, em todo mundo as relações entre antropólogos e ad­ministradores não costumam ser das melho­res. Também o ci­ganólogo europeu Liégeois se refere a este velho, e ao que tudo indica in­su­pe­rável problema ao afirmar que "antes de decidir, é necessário es­tar de posse dos fatos", mas o que se ob­serva é que os admi­nistradores costu­mam agir e ela­borar projetos mirabolantes, sem conhecer a realidade em que vivem as pesso­as a se­rem beneficiadas, e sem co­nhecer seus dese­jos, suas aspirações, seus interes­ses, suas ha­bilida­des, seus valores culturais e suas per­sona­lida­des. O resultado final será, inevitavel­mente, o fra­casso do pro­je­to, cuja culpa será então atribuída não à inépcia dos burocratas das institui­ções que elaboraram e tenteram exe­cu­tar o pro­jeto, mas à pre­gui­ça, ao desinte­resse, à apatia ou a outras caracte­rísticas ne­gati­vas atribuídas aos ci­ganos, vítimas in­vo­luntários do projeto.[1]

Enquanto estavamos realizando nossa pesquisa, outras pes­soas, após al­gumas apressa­das visitas aos ran­chos ciganos e sem nada saber de experi­ênci­as realizadas no exte­rior ou no Brasil, já estavam em ação, ela­borando projetos para "melhorar" a vida dos ciga­nos. Por enquan­to, tudo não passa de vagos proje­tos em papel, felizmente. [2] Mas muitos futuros problemas poderi­am ser evi­tados se, antes da ação, estas instituições con­tratassem pesquisadores so­ciais profissi­onais, honestos e devidamente habilitados, e não pesquisa­dores amadores nem sempre honestos, para um estudo mais aprofundado da reali­dade que pre­tendem melho­rar ou modifi­car. Bacharéis em História ou arquite­tos, por exem­plo, por mais bem in­tencionados e por mais competentes que se­jam nas suas áreas, não são pesqui­sadores soci­ais habilitados, porque nunca aprenderam mé­todos e técnicas de pes­quisa de campo. Mas, diz Lié­geois: "Pesquisadores acadêmicos são prejudicados pelo fato de que eles têm que con­vencer os outros da utilidade de suas pesqui­sas. (..) Pesquisa­do­res dão a im­pressão de estarem mendigan­do fun­dos, ao passo que deve­riam ser conside­ra­dos como pro­vedo­res de servi­ços. Parece justo e cor­reto pagar o arquiteto que constroi um prédio e um centro social num acampamento (cigano), mas nin­guém pensa em con­tra­tar um an­tropó­logo ou um so­ciólogo para, junto com os usuá­rios, re­fletir sobre a lo­ca­lização e a or­ganização do acam­pa­men­to. Mais tarde é con­si­de­rado essencial ter uma equipe de assis­tentes so­ciais para ver se consi­gam ajus­tar os usuários a um acam­pamen­to inade­quado".[3]

Como auto-crítica não costuma ser uma característica de au­tori­da­des bu­rocráti­cas, os cul­pados pelo fracasso do programa sempre serão considera­dos os próprios ciganos! Falando de pro­blemas seme­lhantes na Holanda, Willems e Lu­cassen acrescen­tam: "A ex­periência mostra que os ci­ganos, que antes são vis­tos como vítimas, no final terminam sendo acusados de ter cau­sado a miséria em que se encontram".[4] Es­peramos que este nosso ensaio, apesar de todas suas falhas, contribua para que o mesmo não aconteça também com os paraiba­nos ciganos.

[1]. Liegeois, J.P., Gypsies and travellers, Strasbourg, Council of Europe, 1987, p. 184


[2]. Conforme informações verbais de uma antropóloga sousense, alguns anos depois realmente foi iniciada a construção de casas para os ciganos, num lugar mais afastada da cidade, obviamente sem levar em consideração nenhuma das nossas recomendações. Até hoje as casas continuam inacabadas, mas mesmo assim muitas já foram ocupadas pelos ciganos. Pouco tempo depois foi iniciada a construção de um presídio de segurança máxima, logo vizinho às casas ciganas! Os protestos dos ciganos obviamente não irão impedir a construção deste presídio.


[3]. Liegeois, J.P., 1987, l.c., p. 185


[4]. Willems, W. e Lucassen, L., A silent war: foreign gypsies and the dutch government policy, 1969-1989, Leiden, LUF-Congres, 1990, m.s., p. 16








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